No passado dia 27 de Junho, participei pela primeira vez na Ultra Trail da Serra da Freita, prova que neste ano tinha o rótulo “da prova mais dura de Portugal”, Trail com 70 km e 4200 metros de desnível positivo, a única prova em Portugal continental pontuável para o Ultra Trail du Mont Blanc" (2 pontos).
A serra da Freita faz parte do maciço da Serra da Gralheira, juntamente com a serra da Arada e do Arestal. É uma região de grandes contrastes, de relevo áspero e imponente. Ao austero planalto, onde só florescem os matos rasteiros, contrapõem-se os profundos vales encaixados, atapetados de espesso arvoredo, por entre o qual correm rios rebeldes e tumultuosos. Depois de três anos seguidos com a distância de 50 km (2006; 2007 e 2008), em 2009 a organização da prova decide aumentar, não só o grau de dificuldade, como também a distância para 60 km, este ano mais uma vez, aumentou não só a distância para 70 km, como, e sobretudo, o grau de dificuldade que passou a ser de EXTREMA dificuldade.
Parti para a Freita no sábado na companhia da Otília, pouco depois do almoço, durante a viagem à medida que nos aproximávamos senti várias vezes um friozinho na barriga, mas ao chegar ao parque de campismo do Merujal começámos a encontrar caras conhecidas e com a conversa essa sensação foi passando. Ao final da tarde fomos ouvir as indicações dadas pelo José Moutinho, a conversa não era animadora mas para mim aquele palavreado já não era novo, pois tinha participado no treino de freerunning na serra da Freita e já conhecia o traçado dos primeiros 50 km.
Quando decidi fazer a Freita uma das coisas que meti na minha cabeça foi respeitar a serra e tentar desde o início fazer uma boa gestão do esforço. O que me metia mais respeito era sem dúvida as condições climatéricas, pois a semana tinha sido toda ela de calor e eu com o calor não me dou bem.
O tempo passou depressa, a conversa com os Abutres, o Vítor “Laminha” Ferreira, Aníbal Godinho, Alcino Serras, Joaquim Adelino e Fernando Andrade entre outros versava a prova e as preocupações que cada um tinha, pouco depois hora do jantar, uma macarronada com carne os comentários sobre a prova durante a refeição eram jocosos tentando descontrair e minimizar o nervosismo que todos sentíamos.
Após uma noite razoavelmente dormida, acordei pelas 4h00 da manhã, últimos preparativos e pelas 5 horas os cerca de 180 atletas que alinharam à partida estavam prontos para enfrentar e percorrer o percurso mais duro e longo alguma vez corrido em Portugal.
Parti com ritmo moderado junto à Otília, a luz dos frontais era ténue e não queria logo no início colocar mal um pé o que poderia ser fatal. Cerca dos 5km (40’) decido seguir um pouco mais rápido, acelero e colo-me ao Herculano Araújo e Pedro Basso. Ainda era muito cedo, o ritmo era confortável, mas o “sábio” Herculano lá ia dizendo que a prova só começava depois do rio. No final do trilho do carteiro apanhámos o “Abutre” Vitorino Coragem, nessa altura o grupo tinha cerca de 6 ou 7 elementos (um dos quais espanhol), passámos a tasca da tia Isaura, mas não havia tempo para parar, e em ritmo certinho lá seguimos até ao rio, onde chegávamos com 2h07, antes da descida estava o Luís Leite, para se certificar que ninguém segui pelo alcatrão.
No rio o Herculano e o Basso aceleram, penso para comigo como é possível correr com aquele ritmo no rio, mas como são 3km de rio decido manter o meu ritmo, o Vitorino fica para trás, fico apenas na companhia do “espanhol”, vamos saltitando de pedra em pedra, correndo quando é possível, escalando e andando, o “espanhol” vai dizendo que a paisagem é espectacular “Estoy alucinado”, sempre com cuidado vou avançando mas a pedra está molhada e sem saber como estou no chão, uma ligeira escoriação na nádega direita mas nada de impeditivo.
Pouco depois para meu espanto encontro o Aníbal Godinho, que com algum receio lá vai avançando, gracejo com ele dizendo que devo estar a fazer uma grande prova, pois estou junto a ele… o Aníbal dá-me passagem e lá vou eu, depois da última travessia onde a água molhava mais que os joelhos…. subo a rampa e junto ao alcatrão está o Moutinho a verificar se tudo está bem, olho para o cronómetro e estou com 2h51, consegui fazer o troço do rio em 44 minutos.
Já no alcatrão eu e o “espanhol” reiniciámos a corrida, pouco depois a subida para o abastecimento dos 20 km, onde chegamos com 2h58 (o controlo fechava às 4h00 de prova). Paro para abastecer, bebo coca cola e água, encontro o Vítor Ferreira a mudar de meias o Carlos Fonseca entre outros, pouco depois chega o Aníbal, o “espanhol” que me acompanhou durante o rio decide partir, mas eu ainda tenho de preparar o isotónico, no final estou cerca de 8 minutos no abastecimento, quando parti tinha apenas a companhia de um atleta que não conheço o nome.
Lá fomos correndo, falando sobre os “Trilhos do Almourol” e da dificuldade da prova, um pouco mais à frente o Aníbal passa por nós e segue no seu ritmo, o trilho que estamos a percorrer é muito belo todo ele feito de lajes, um pouco mais à frente uma subida de pedra solta, alguns atletas à nossa frente e apanho o Vítor Ferreira que estava sentado a uma sombra a abastecer.
No final da subida forma-se um novo grupo de 3 atletas, eu o Vítor Ferreira e a Júlia. Os 3 vamos correndo até Drave, que paisagem magnifica.Ao passar pelo rio o Vítor mergulha, eu sigo a Júlia mas ela vais mais rápido e acabo por ficar sozinho, lembro-me que no freerunning que fizemos me tinha perdido, pelo que tentei ter atenção, mas mesmo assim já estava a seguir pelo trilho errado quando sou chamado por um caminheiro, que me informa que o trilho é 10 metros abaixo. Apanhado o trilho certo, percebo que a Júlia se tinha enganado e seguida outra direcção, alguém mais abaixo a chama o que as faz voltar atrás e entrar de novo na rota certa. Estamos agora na famosa subida de Drave (28,8 km) neste momento já tenho 4h35 de prova, a subida é bastante inclinada e o piso é bastante técnico, a marcha é lenta, o Vítor ao perceber a minha dificuldade passa para a frente e tenta que o grupo o siga, mas eu não tenho bastões e mantenho o meu ritmo.
Vou passando por alguns atletas que estão sentados no chão à sombra das giestas, alguns aproveitam para abastecer outros apenas se queixam do calor. Tento manter o meu ritmo e lá vou avançando, finalmente lá chego ao final da subida com 30,1 km de prova e 5h05, os últimos 1300 metros demoraram 30’. No final da subida novamente o Moutinho, que me informa que 1 km abaixo está o abastecimento, agora o terreno era em estradão que em forma de zig zag nos levava até Gourim, aproveito para correr (o que já não fazia há algum tempo). Chego ao abastecimento (liquido) com 5h19, faço nova paragem para encher o camel back e fazer isotónico, aproveito para ligar à Otília, que me diz que está ainda a caminho de Drave, que já se sente cansada e que não sabe se consegue chegar ao controlo dos 40km dentro do tempo.
Estou parado no abastecimento 11 minuto, alguns atletas chegam e seguem logo de seguida, outros param e comem. Quando decido recomeçar vou até junto da fonte para me refrescar e novo “tralho”…. desta vez foi o cotovelo direito, mas novamente nada de impeditivo. Sigo agora pela aldeia de Gourim, um trilho junto ao rio e depois de atravessar o rio nova subida (33km), desta vez a famosa “Garra”, uma subida que apenas está marcada por fitas pois o trilho nem vê-lo. Vou progredindo com dificuldade, o terreno tem muitas pedras e arbustos o calor aperta a inclinação dificulta a progressão, mas apesar de todas as dificuldades lá vou seguindo, a meio da subida sou apanhado pelo Vitorino, que lá vai dizendo que os bastões dão uma grande ajuda, sobe com ligeireza, nem parece ter a idade que tem. Quando chego finalmente ao final da “Garra” (35km) vejo o Vítor sentado, não percebo que está lesionado e sigo pelo alcatrão, opto pela marcha até que o terreno fique mais plano, o Vitorino faz-me companhia, ao chegarmos ao estradão das eólicas começamos a correr pouco depois entrámos no trilhos dos Incas, o trilho está bastante fechado o que dificulta mais uma vez a progressão, a vegetação vai-nos arranhando e ainda nós estávamos no início. Pouco depois o Vitorino tropeça e dá um grande malho, pensei para comigo que o “Abutre” tinha acabado ali a sua prova, mas o Vitorino é dos rijos e mesmo magoado levantou-se e lá fomos. Vou seguindo à frente do Vitorino, depois de algum tempo já estou sozinho, vou avançando confiante para o Abastecimento/controlo dos 40 km onde chego com 7h34 (fechava às 9h00).
Quando chego ao abastecimento fico surpreendido por ver o Paulo Mota, a Dina Mota, o Paulo Paredes entre outros, rapidamente me perguntam se quero desistir, respondo que não. Abasteço de água fresca na fonte e bebo coca cola, sento-me um pouco para aliviar as costas e acabo por estar 14 minutos no abastecimento, entretanto chega o Vitorino que abastece rápido e me “convoca” para seguirmos, formamos um grupo de 3 atletas, nessa altura passo a ter um novo companheiro o Hugo Luz. A Próxima subida que nos esperava era uma calçada romana dos 42,7 km aos 45 km, mas esta até que nem custou muito porque a vegetação não impedia a marcha, a meio da subida encontro o Carlos Fonseca sentado, diz que está tudo bem que está a descansar, lá em cima temos um estradão de acesso às eólicas, no final um trilho bastante técnico e algo perigoso que desce, desta vez o Vitorino vai à frente e lá vai reclamando que a vegetação está muito densa e que não se consegue correr, com dificuldade vamos descendo e quando alcançamos a base um estradão de terra batida, começamos a correr e nesse momento começa a chover e a cair granizo, o Vitorino fica novamente para trás neste momento tenho novos companheiros apenas conheço o Hugo Luz e o Tiago Dionísio, a temperatura apesar da chuva mantêm-se elevada, está bastante abafado, mas ainda falta bastante para acabar a corrida….
Manhouce e o abastecimento dos 50 km aproximam-se, chego com 9h55, os meus colegas de grupo abastecem e seguem logo de seguida, opto por ficar mais um pouco para atestar o camel back e fazer mais isotónico, tiro 3 cubos de presunto e como, reforço com um pouco de sal que trazia, bebo coca cola e depois de 5 minutos no abastecimento parto. O trilho em seguida é muito bonito, apanho o Mark Macedo que ia lesionado e agarrado a um pau, mas o abastecimento (as misturas) não me assentou bem, tenho de parar e vomito… tento recomeçar a corrida e recomeço a vomitar, pensei para mim mesmo que provavelmente a prova terminava ali, mas subitamente senti-me melhor e recomecei a corrida.
A partir daqui a corrida passou a ser solitária, tinha de ser eu a manter o ritmo e a gerir as energias.
Abastecimento dos 60km, chego com 12h03, como uns bolos secos e uns pedaços de banana, atesto o camel back, faço isotónico e 7’ depois parto para a subida da lomba, uma subida muito longa com um piso muito irregular e com vegetação média, no final o trilho desaparece, são 4 km em que as forças começaram a faltar, mesmo assim consigo passar alguns atletas que se encontram em piores condições que eu. Quando chego ao topo (13h12) consigo arranjar forças para correr um pouco, o Moutinho está um pouco mais à frente e informa-me que tenho cerca de 45 minutos para chegar ao próximo controlo, o dos 65 km. Agora era a descer por isso havia que recuperar tempo, consigo correr o percurso não é muito técnico e alcanço o controlo com 13h22, bebo apenas um copo de água e sigo para o desconhecido.
Faltavam apenas 5km e tinha mais de 1h30 para os fazer, o trilho após o abastecimento era fácil e lá fui correndo, pouco depois chego ao famoso PR7 - Frecha da Mizarela (que desconhecia por completo), o percurso a descer não é fácil, há bastante pedra solta e zonas em que é necessário agarrarmo-nos a correntes para transpor zonas mais perigosas, mas eu não perco tempo, consigo reagir bem e ser rápido, atravesso a ponte sobre o rio, acho graça à placa que permite apenas a passagem de 3 pessoas de cada vez,
mas a parte mais difícil estava para vir porque depois da descida começa a subida que me demorou 50 minutos para fazer 1500 metros, os degraus são enormes, há socalcos com pedra solta, a inclinação é muito acentuada (impossível de descrever), consegui fazer 1 km em 38 minutos, por várias vezes tive de parar e sentar-me para ganhar fôlego, comecei a ter cãibras nos quadricipedes, o que nesta fase é um problema para alongar, olhava para o relógio, o tempo fugia e eu via a minha “Finisher” a esfumar-se.
Nesta fase alguns atletas passam por mim, tento seguir com eles mas as cãibras não deixam. Forço para continuar e sem saber como estou a ser fotografado pelo Orlando Duarte (obrigado Orlando) que me informa que agora deixa de ser escalada e é estradão.
Mas a inclinação não permite mais que marcha lenta, começo a ouvir o Joaquim Adelino, o Fernando Andrade e o Vítor Ferreira a chamar por mim, para que eu não desista pois ainda é possível chegar ao fim dentro do tempo limite, olho para o relógio e penso que já não consigo, pois faltam menos de 10 minutos para o último quilómetro.
O terreno agora era plano mas as energias já se tinham ido naquela subida/escalada, recomeço a correr, entro no trilho que já tinha percorrido no início da prova, mas há uma pequena inclinação que me faz voltar novamente à marcha, olho constantemente para o relógio e obrigo-me a prosseguir, começo a ver mais pessoas a incitar-me, vejo o Fernando Homem e um pouco mais à frente o pórtico de meta olho para o relógio mais uma vez e ainda me faltam 2 minutos para chegar dentro do tempo de controlo.
Subitamente deixei de ter cãibras e dores só queria correr o mais rápido possível para a meta para terminar esta aventura de correr na serra da Freita.
Terminei a prova dentro do tempo limite dado pela organização (15 horas), fui o 69º atleta na linha de meta com 14h59,39 de prova.
Tinha conseguido terminar a prova provavelmente mais dura de Portugal, depois de cortar a meta um misto de sensações na minha cabeça que não sei bem por por palavras.
Se por um lado a prova foi bastante dura e todos nos queixávamos no final, por outro um prazer enorme de ter conseguido e de provavelmente querer voltar para correr a Ultra Trail Serra da Freita.
Tinha conseguido terminar a prova provavelmente mais dura de Portugal, depois de cortar a meta um misto de sensações na minha cabeça que não sei bem por por palavras.
Se por um lado a prova foi bastante dura e todos nos queixávamos no final, por outro um prazer enorme de ter conseguido e de provavelmente querer voltar para correr a Ultra Trail Serra da Freita.
Junto ao pórtico a minha Otília, eu sabia que embora ela tivesse desistido estava feliz por me ver chegar, junto a ela a Ana Paula e o António dois companheiros que conheci neste fim de semana e a quem agradeço o apoio.
Fotos "roubadas" de vários companheiros participantes, a quem agradeço
Saudações Trailianas
Saudações Trailianas
4 comentários:
Parabéns Brito,
Concluíu uma prova extremamente com elevada dificuldade,só os 70 Km em sim já impõee respeito, além do mais exige determinação e perseverança.
Belo relato!
Um abraço e boas-férias!
Fico feliz se o nosso apoio significou alguma coisa.
E como já te disse, foi um orgulho imenso ver chegar o meu "vizinho". Contigo, vencemos todos, tenho a certeza: a Otília, o António e Eu (além de todos os outros amigos e companheiros)
Mais uma vez, parabéns.
Parabéns Brito FINISHER!!!
Vibrei com o teu relato. Este ano fiquei-me pela corrida, mas para o ano quero tentar a prova dos "omes"! :)
Um abraço e até um dia destes, num trilho qualquer algures por aí...
André Costa.
14h59'39''
Mais 22'' e lá se ia o tempo previsto e chegavas fora de controlo. Ainda bem que não desististe pois mesmo que chegasses fora serias "repescado" para a classificação final... feita no dia seguinte.
Uma bela descrição da prova, só ao alcance de poucos e muitos daqueles habituados a durezas de trilhos ou provas de montanha ou aquilo que lhe queiram chamar ficaram pelo caminho.
Se só ao fim do terceiro é deste o teu grito do "Ipiranga" trailiano, é sinal de que foi merecido, mas sofrido.
:)
Pelo descrito não sei se algum dia virei a tentar fazê-la, mas olho com admiração não só aqueles que a fizeram como aqueles que a tentaram fazer.
Salvé "trailiano" Brito, que os deuses te protejam.
Abraços
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